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A importância do sujeito corajoso ainda que petulante

Dessa vez, entro na livraria do shopping com um objetivo certo — a mim, não custa muito passear por ali— mas fui decidido a levar algo do Francis.

Queria entender como era escrever em um mundo onde o jornalismo não tinha assassinado, velado e enterrado a opinião. Paulo Francis é o homem da contra-mão das considerações afiadas que não existe mais.

Todo jornalista tem a obrigação de mergulhar na mente bélica daqueles olhos azuis esbugalhados e esmagados dentro de lentes garrafais por trás do óculos que não perdia um detalhe sequer.

Posto isso, voltemos a cena da livraria. Faço uma caçada minuciosa entre os corredores coloridos sempre portado do meu olhar atento de um garimpeiro experiente.

Dirijo-me à sessão de “Comunicação”. Não encontro nada. Dobro os beiços como quem não entende a classificação do estabelecimento. Insisto um pouco mais diante na prateleira dos “Autores brasileiros”. Mais uma vez, sem sucesso. Penso que talvez, os repositores pensem que um brasileiro emprestado por mais de vinte e cinco anos a Nova Iorque, seja tecnicamente um americano.

Trombo com um livro de um youtuber, que no auge dos mesmos vinte e alguns anos de idade, acreditou que tinha história suficiente para lançar uma biografia. O episódio me faz esbravejar sozinho como um idoso de cãs ralas assistindo ao Jornal Nacional.

Desisto. Vou logo cercando uma vendedora com cara de veterana. Cumprimento-a formalmente e disparo: “O que é que você tem aí do Francis?”. Ela me olha com desconfiança. Talvez tenha passado pela sua cabeça que nem tenho idade para isso. Explico dizendo que sou jornalista. Era como se seu rosto tivesse encontrado sentido.

Ando com ela até a prateleira que dizia “Ciência sociais”. Isso mesmo, o jornalismo de Francis foi classificado quase como um tratado sociológico dos absurdos. Ele próprio rejeitaria o selo, e, sem dúvida, detestaria dividir a vizinhança da estante com boa parte daqueles autores. Veja só, a obra fica, mas o que fazem com ela não há controle algum.

Pego a edição de “A Segunda Mais Antiga Profissão do Mundo” nas mãos. Era, enfim, o que eu buscava. Constato em voz alta: “Nem na capa do seu próprio livro o Paulo sorri”. Inicio uma conversa com a atendente que me conta algumas das suas memórias e episódios do “personagem” de Francis na TV.

Abria um sorriso quando fomos abruptamente interrompidos por umas daquelas adolescentes de trinta anos. Cabelo infausto, blusa de golas recortadas e calças agressivamente fatiadas. Fazia questão de escancarar a rebeldia. Se pudesse tatuaria na testa e em caixa alta a sua revelia.

A moça queria saber de Horkheimer. A vendedora ficou confusa, mas apontou a direção com mão. A menina teve de explicar que precisava ler aquilo para um trabalho da faculdade.

Aproveitou, e com um estranho tom arrogante, destilou todo o seu interesse por um dos pais fundadores da Escola de Frankfurt. Vinha diretamente do fato dela ter acabado de ingressar na universidade. Ela fez questão de dizer.

Depois de uma demonstração involuntária do seu conhecimento adquirido com a leitura de meia dúzia de livro — para não dizer capítulos — pediu o pacote inteiro da escola alemã: Jürgen Habermas, Theodor W. Adorno e Herbert Marcuse.

Folheou durante alguns minutos os livros, conferiu o preço no maquinário e acabou levando apenas o solicitado. O capitalismo não é só um problema ideológico para o estudante, mas sim um obstáculo monetário.

Há essas alturas, com Paulo Francis na mão, senti que se fosse ele no meu lugar, teria tido uma conversa de pé de ouvido com a garota. Um pequeno ataque de provocação. Francis não teria tido a elegância do silêncio que tive.

Não há, em muito tempo, um sujeito que gostasse tanto de ser controverso, questionável, discutível, problemático, duvidoso e contestável do que o Francis. Ele não era apenas um caos, era um pandemônio culto, um rebatedor nato, um engenhoso debatedor.

Até hoje, o jornalismo amarga sua falta. Paulo é uma ausência inestimável. Com seu fim, morreu também o antagonismo. Com sua partida, assumiu-se a inexistência de lados oponentes no jornalismo brasileiro. Todo mundo virou solista de uma nota só. O clarinete barulhento e desafinado do Francis faz uma falta danada.

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