Nada de bom acontece por acaso
De longe, os olhos espremiam-se num esforço hercúleo para identificar se realmente aquela silhueta delicada da garota, era enfim, aquilo que conhecia apenas do Instagram. Calculou, mesmo na sua imensa falta de precisão matemática, a possível estatura que era compatível com ela. Bateu na mosca. Comparou o jeito ímpar que ela tinha de se vestir e decretou: Inconfundívelmente, é essa menina.
Mesmo de longe, sem conhecer absolutamente nenhum centímetro da sua personalidade, sem ter na mente um medidor inescusável dos efeitos que o sorriso dela causava na sua mente, sem ao menos ter tido a chance de decorar os detalhes do seu rosto, aquela imagem denunciava a sua delicadeza imparável da garota.
Ela, por sua vez, fixava os pés no chão, enquanto imóvel, olhava para o carro como uma perito. Ela ainda tinha dúvidas se era permitido estacionar naquela vaga. Desconfiou por um instante, tentando equilibrar a bolsa no antebraço direito.
Num golpe de aleatoriedade, girou o rosto poucos graus pro lado e viu o rapaz olhando para ela como quem buscava certezas da sua identidade. Ela também não sabia se aquele corpo parado a observando era realmente a pessoa que havia combinado de se encontrar com ela. Os dois tiveram a certeza mais esquisita das suas vidas.
Entreolharam-se, e mesmo de longe, sem qualquer certeza formada, a moça gritou: “Eu acho que não posso parar aqui né?”. Ele não tinha mais dúvida. Caminhando na direção, agora com um sorriso no rosto de quem sabia que a voz doce e calma era dela, respondeu: “Bem, acho que aí é portão.” apontando para o outro lado da avenida, sugeriu: “Tenta parar do lado de lá.” Ela aceitou a sugestão. “Vai lá, eu seguro sua bolsa”, disse tentando ajudar.
Não era assim que ela tinha visto no cinema. Nenhum roteiro premiado tem uma cena de um encontro começando com tanta trivialidade. Deu a volta com o carro e parou na vaga maior. Atravessou a rua novamente pensando absolutamente tudo e nada ao mesmo tempo.
Agora sim, se cumprimentaram conforme deveria seguir o padrão. Um abraço rápido e simples como quem não sabia absolutamente nada o que iria acontecer. Entraram no café. Aquele café que ele dizia que tanto amava. Impressionantemente vazio.
Era como uma particularidade num mundo imenso. Era como se naquele dia, todos os figurantes tivessem entrado numa greve coletiva. Era apenas os dois e mais duas ou três pessoas em pleno sábado a noite.
Ele escolheu o lugar para sentarem e explicou que não gostava de sentar de costas para porta. Sorrisos tímidos. Falaram sobre qualquer coisa tola para quebrar o gelo convencional. Ela mal conseguia olhar nos olhos, ninguém conseguia sondar o que o outro pensava.
Sem a timidez clássica, ele seguia obcecado pela maneira como ela se vestia bem, pelo sorriso discreto de no canto da boca e pela voz originalmente suave e lenta.
Ela explicava mil coisas sobre a vida, sobre o trabalho, sobre o mundo enquanto ele ainda fixo nos olhos dela tentava compreender absolutamente tudo o que ela era. Ele foi de pão de queijo recheado. Ela o seguiu. Ela, apontou a bebida quente pro garçom. Ele, foi logo de suco de maçã verde gelado.
Entre frases, olhares e sinais claros de afinidade, iam se surpreendendo com a compatibilidade. Tinha algo que gritava a similitude evidente. Os dois sentiam aquilo crescendo, mas disfarçavam entre as conversas informais. Pareciam se entender bem. Até que alguém notou: “Eu acho que eles estão fechando porque só tem a gente aqui e a cozinha está sendo limpa”. Notaram que precisavam ir embora.
Na saída, ela sugeriu de dar uma carona. Ele pensou que talvez tivesse que a conhecer melhor, mas o benefício da dúvida arrematou aquela certeza de que ele tinha que entrar naquele carro. Bingo. Ela colocou a chave na ignição, mas girou apenas metade acendendo as luzes do painel, mas sem dar partida. Ele decidiu elogiar o que via de tão especial nela.
Os vidros fechados aumentavam a pressão interna. Do carro e do coração. Como um bolo numa forma, crescendo mais que o universo em expansão. O carro tornou-se a única coisa importante do mundo. As intermináveis conversas foram se alargando junto com o tempo que insistia em passar a seu modo.
Deram-se conta de que haviam estado juntos por muitas horas. Ele decidiu confessar o quanto ela era diferente de tudo que ele já conheceu. Num golpe inesperado de franqueza, inegavelmente, desabrochou as sinceridades numa prodigalidade de elogios regidos por um mundo de discursos laudatórios nascidos nas mais puras verdades indissolúveis.
Estava sendo pontual e memorável. Disse a garota tudo o que pensava sobre ela sem medo do que ela realmente ia pensar. Num ápice momentâneo de não deixar passar uma oportunidade de contá-la, ainda que ela soubesse no fundo, que era uma joia rara inestimável. Um adorno sem enfeites falsos. Uma delicadeza polida num ourives de mãos melindrosas. Um ornamento necessário na vida de um homem sortudo.
A garota emudeceu como num velório do óbvio. O silêncio disfarçava o olho cheio de água da mais absoluta e violenta forma de admiração. Ela seguia estática. Ele acrescentou: “Me dá um abraço?”.
Dalí, daquele abraço pechinchado, surgiu um repentino beijo coordenado pelo ritmo do coração disparado que bombeava a ansiedade para fora das janelas. O calor da respiração compartilhada havia ganhado um sentido mais concreto: A lembrança absoluta de que na vida nada é para amanhã.
Eles constataram juntos que algumas loucuras precisam ser vividas no ápice do seu berço. Foram mais algumas horas numa combinação proposital de afeto voluntario e sensibilidades nos olhares.
Mais umas horas haviam passado sem notarem o relógio. Era muito mais que meia-noite. Eles precisavam encarar a despedida como uma verdade cruel no meio de tanta troca de humanidades, conversas abarrocadas de verdades e emoções a flor da pele.
Foi quando, a vida, na sua sátira irônica, fez a falta de bateria do carro acrescentar uma pitada de comicidade que energizou ainda mais as risadas do improvavel, o sorriso que ele tinha visto a noite inteira estampado na cara dela, ainda era mais intenso do que aquele do primeiro olhar.
A risibilidade da vida é uma marca indispensáel que faz com que pessoas sejam apenas um depósito mútuo um do outro. Rir da vida acompanhado é um privilégio. Era exatamente isso que queriam viver.
Foram o caminho de volta sorrindo daquele dia. Sem roteiros, sem medidas, sem saber absolutamente nada sobre o outro, acharam-se no cuidado singelo. “Me avise quando chegar em casa para eu saber que está bem?”. Ela apenas confirmou que sim com a cabeça sem uma palavra flagrante na boca.
Ali, naquela despedida curta de uma noite longa, tatuaram uma nota mental nos seus murais da vida. Em letras garrafais a seguinte constatação: Absolutamente nada de bom acontece por acaso.
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