Queimando o cérebro no altar da ingenuidade
O feriado é o único lugar em que o brasileiro quer realmente morar. É por lá que temos um bom indulto para vagabundear sem culpa. Com a maior precisão aritmética, o brasileiro contabiliza dias rumo à uma folga exemplar.
Nada mais humano que a matemática da vadiagem. Mas entendo, a gente está vivendo o massacre do vício de parecer importante, ocupado e produtivo. Daí a impressão que só um alivio de um recesso pode nos salvar disso tudo.
Há muita expectativa no feriado. A esperança de que podemos ali, finalmente, escolher o que fazer com nosso tempo. Nada mais luxuoso do que poder definir como vamos desperdiçar nossas horas. E tem mais, o feriado bom é o prolongado. Daqueles que assassinam quatro ou cinco dias.
Este fato acontece porque a gente, no fundo, se sente mal em ter que viver em um mundo com avalanche de obrigações, excesso de informações e tudo isso rodando na velocidade máxima. No fundo, a gente sabe que essa vida que levamos pode ser a mais pura perda de tempo.
O fato é que um dia desses, em uma folga mais frouxa que o normal, acabei me rendendo a típica atração primitiva do ser humano de se embrenhar no meio de um mato qualquer em busca por uma aventura. Tem algo de mágico e redentor na busca de uma ducha gélida de cachoeira.
No meio do caminho de volta, acabamos sentando perto de umas pedras rústicas para fazer um lanche. Num absoluto silêncio catedrático e diante da paisagem indescritível, uma amiga — mais ligada a essa coisa da natureza — acabou por suspirar alto e dizer:
— Ai gente… Pena que amanhã a gente tem que voltar para a realidade né?
Num súbito surto de sanidade, tive um lapso imparável de lucidez. Balbuciei baixinho mas audível:
— Não, na verdade, não.
Todos me olharam de maneira sincronizada com um afrontar de dúvida, mas sem saber ao certo do que eu estava falando. Continuei:
— O fato é que neste lugar está a realidade. A cidade é que foi inventada. Reparem bem, a ideia de cidade vem com o fato de que o homem precisava se sentir seguro para combater os perigos imprevisíveis da natureza e também a nossa própria barbárie por ter. Quando nos vimos no cenário do imponderável, precisamos nos isolar, controlar e administrar as coisas. Mas, a gente foi feito pra isso. Por isso a gente busca isso aqui. Por isso a gente se sente bem aqui. A cidade inventou a rejeição do óbvio concreto, para criar uma nova perspectiva de realidade criada.
Aquela verdade fez com que ficássemos estagnados por uns segundos. Eu mesmo não tinha ainda absolvido tudo aquilo acabara de dizer. De repente, todos se deram conta do que estava acontecendo ali. Descobrimos que somos humanos, portanto, sentimos o mundo gritar a nossa volta.
Quando me percebi minha boca já tinha ganhado vida própria e não se calava:
— A verdade é que… os prédios são inventados, o transito é um acordo, os trabalhos formais é que são criados e mudados, e toda essa realidade com muros bem delimitados, leis bem pontuadas, hábitos bem controlados e rotinas bem desenhadas é que não é a realidade.
Ficamos ali mais alguns minutos tentando engolir esta situação toda. Alguém decidiu, num ato de coragem, levantar-se e lembrar que estava escurecendo e que precisávamos voltar antes. Viemos quietos o caminho todo de volta. Passos curtos até a área dos chalés com aquela denuncia que eu fizera ecoando quase sem querer.
Passado alguns dias, uma das pessoas que estava comigo nesse episódio me confessou de que aquela conversa havia realmente a libertado da loucura de ver a vida na cidade como a única possibilidade de realidades.
Deixou escapar que a vida que ela levava não era suficiente e não queria mais viver sujeita a toda essa troca de sentidos. Eu fiz silêncio. Ela me perguntou:
— Será que ainda dá tempo de retomar essa consciência?
Só deu tempo de terminar de tomar minha cerveja numa golada e dizer para ela:
— Aproveite a cidade para escarnecer dos que acreditam que nela está toda felicidade possível, mas sirva-se de doses de natureza para não perder de dimensão que a vida é muito mais que asfalto, dinheiro e bens.
A vida não pode se resumir a morrer cinco dias e viver outros dois. Não podemos apenas ter vida de feriados em feriados, de sextas em sextas, de intervalos e intervalos. Precisamos aprender como podemos viver a ilusão inescapável a mesmo tempo que priorizamos a qualidade da realidade.
Não dá para fingir que não aprendemos com aquela experiência. O mundo não é feito de chavões de CEO, de frases-feitas de slogan de banco, de papos clichês sobre o quanto precisamos de dinheiro, dos estereótipos de sucesso ou qualquer outra coisa que queira chamá-los.
A consciência existe para que um sujeito que não refletiu com coragem possa obter o mais importante elemento do ser humano: A habilidade de pensar e mudar sua vida. Não seja ingênuo de sacrificar o cérebro.